Histórico E.S.U.T.N.

Histórico da Escola de Samba                                                   

 

“UNIDOS DA TIA NÍCIA” – UMA ESCOLA DE SAMBA FRANCESA

 

Com uma tese intitulada ” Abordagem Semiótica do fato Musical Brasileiro BATUCADA, Nícia Ribas D’Ávila foi julgada digna do título de Doutora em Ciências da Linguagem- Semiótica- pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III (1)

 

Nícia D’Ávila começa na França em 1976, na Universidade de Provença (Academia de Aix-Marselha), no curso de semiologia da Música na Faculdade de Letras, com o intuito de preparar uma dissertação de Mestrado sobre a análise semiológica da Música Brasileira, conectando-a a um trabalho sobre a Linguagem das Percussões do Brasil. Estava inscrita como aluna especial.

 

Interessada nos fenômenos de comunicação de massa e com a finalidade de fazer conhecer a Cultura Musical Brasileira – e o ritmo que caracteriza sua identidade, o Samba -, com o ensinamento das percussões das Escolas de Samba, ela inicia uma pesquisa, em Aix-en-Provence, tendo por finalidade colher dados em relação: a) à capacidade que esse ritmo tem de atrair estrangeiros; b) à capacidade dos estrangeiros de reprodução do ritmo samba com autenticidade, fazendo uma Batucada (2) com todos os instrumentos específicos de uma batucada completa e complexa, fazendo-se reconhecer e julgar por mestres brasileiros.

 

No início tudo isso representava uma parte da pesquisa em Semiologia da Música sobre a Linguagem dos Instrumentos da Batucada, a interpretação e a utilização desse tipo de linguagem por estrangeiros que desconheciam-na totalmente, e o reconhecimento – obtido dos ritmistas (batuqueiros) das Escolas de Samba brasileiras-, sobre a reprodução perfeita de uma Batucada manifestada por estrangeiros.

 

Para atingir seu objetivo, a partir de um corpus (3) por ela codificado no Brasil, Nícia apresenta parte dos resultados de sua pesquisa na Universidade de Provença, no curso de Mme. Nicole Moutard (1976/1977).

 

Primeiramente tratava-se de um trabalho de imitação em que os alunos deviam reproduzir certas frases dos 13 diferentes instrumentos das Escolas de Samba, as acentuações, a duração, a dinâmica, reconhecer os diferentes timbres, o papel dos surdos, o momento de “atacar” para cada instrumento, certas ‘saídas’, os breques, enfim, uma maneira bem simples de apresentar uma Batucada.

 

Os resultados iniciais foram constatados em 1977, quando apresentou pela primeira vez a Batucada, enquanto sistema de Linguagem (de percussões), na Universidade de Provença, contando – para a execução dos instrumentos – com seus alunos do sul da França, de Aix-en-Provence, de Nice e de Marselha.

 

Tendo que regressar ao Brasil, Nícia continua sua vida de musicista, professora, maestrina e pesquisadora sobre a Significação na Cultura Musical de Massa. Ela só retorna à França no final de 1979 para concluir seu mestrado e suas pesquisas iniciadas em Aix-en-Provence, objetivando prosseguir estudos voltados para a ‘Teoria da Significação’. Ingressou, então, na Escola Semiótica de Paris motivada pelos seguintes questionamentos: “Poderiam os estrangeiros tocar o nosso samba como nós o fazemos? Conseguem fazer-nos mexer como nós o fazemos, batucando? Como saber se o Samba constitui um fenômeno de Comunicação de Massa, se restringimos essa massa a um território? O Brasil, por exemplo? Qual é a célula que ‘faz-mexer’ e onde ela se insere? O que é o “feeling”? o “Balanço”(swing)? Estão eles ligados ao ‘espírito brasileiro’? Deve-se crer na famosa frase dita no Brasil: “Os gringos não conseguem tocar o samba!”? Então como ensinar-lhes as regras do jogo para obtermos resultados que possam responder a esses questionamentos?

 

Nícia acreditava que, para continuar esse trabalho, era preciso escrever (simplesmente como apoio) as frases de base de cada instrumento, certos clichês e onomatopéias para facilitar aos seus alunos a memorização das figuras sonoras, partindo do princípio em que o samba, para eles, não se constituía numa prática do cotidiano. Desse modo ela ensinou-lhes a tocar os instrumentos, a ler as figuras rítmicas e depois, a escrevê-las. Por essa razão, Nícia criou um método acompanhado de uma cassete, intitulado Le Samba en Percussions – Batucada Brésilienne, com exercícios para desenvolver a coordenação motora.

 

Após ter obtido o Mestrado (1980), ela muda-se para Paris afim de preparar seu D.E.A. (Diploma de Estudos Avançados) em Semiótica – Lingüística e Musical – na Universidade Sorbonne- Paris III (4).

 

Para continuar suas pesquisas Nícia oferece cursos de percussões brasileiras no Teatro Negro, na Maison Internationale Universitaire de Paris, e na Maison du Brésil.

 

Os alunos de Nícia e suas emanações encontram-se hoje espalhados por toda a França, em grandes grupos de Samba (Batucada/Bateria), em: Marselha, Aix-en-Provence, Paris, Nice, Rungis, Rennes, Chartres, Quimper, Douarnenez, Valence, Tours, Avallon, Toulouse, Juan-les-Pins, Clermont-Ferrand, Pont-Saint-Esprit, Montpellier, Lille, Bordeaux, Charleville-Mézières, assim como em outras regiões onde seu trabalho continua a expandir-se não apenas direcionado à Música, mas à língua, artes, culinária, usos e costumes do Brasil.

 

Em Toulouse, no carnaval de 02 de março de 1985 , Nícia e seus alunos apresentaram seu trabalho diante dos batuqueiros percussionistas da Escola de Samba União da Ilha do Governador que acabara de ganhar o estandarte de Ouro como a melhor Bateria do Carnaval do Rio de Janeiro, de 1985. Dada a autenticidade do trabalho que Nícia desenvolvia na França como Mestre de Bateria, reproduzindo o verdadeiro Samba do Brasil com 40 alunos percussionistas, a famosa Escola Brasileira GRESUIG- União da Ilha do Governador-batizou a Escola de Samba Francesa, que, a partir daquela data, passou, oficialmente, a chamar-se “Escola de Samba Unidos da Tia Nícia – E.S.U.T.N., a única Escola de Samba batizada fora do Brasil, em 03-03-1985. Tratava-se de um batismo de fato e de direito em que a Escola de Samba brasileira GRESUIG e a Escola de Samba Francesa – ESUTN tocaram juntas breques e Samba-enredo novos, dirigidas pelo Mestre de Bateria da GRESUIG, Paulão, diante de 4000 espectadores que aplaudiram calorosamente. Nesse dia estava presente o eminente pesquisador e historiador da Cultura Musical Brasileira, e em particular das Escolas de Samba, Sérgio Cabral, escolhido por unanimidade pela Escola de Samba Francesa, como Patrono da ESUTN. A ESUTN constituía-se de alunos médios e avançados que acompanhavam Nícia em espetáculos, conferências, na França e no Exterior, seguindo seu método de ensino. Essa Escola teve o prazer de tocar com a Mocidade Independente de Padre Miguel, nas ruas de Antibes, Juan-les-Pins, por ocasião do Grande Festival Brasileiro, em Junho de 1985. Nícia e seus alunos prestaram homenagem à Escola visitante, conhecida por sua Bateria nota Dez e famosa pelas magníficas “paradinhas” criadas por Mestre André – O Mestre dos Mestres. Essa Bateria constituiu-se como modelo para os primeiros ensinamentos de Nícia a seus alunos, na França (5). As duas Escolas festejaram juntas, sendo o momento culminante do Encontro, a parada da Bateria da Escola visitante, e a dança dos passistas da Mocidade – “dizendo no pé” como nunca -acompanhados pela Bateria da ESUTN. Isso representou, para o trabalho de Nícia, uma sanção positiva.

 

No Primeiro Encontro Europeu do Samba, de 28 a 30 de agosto de 1986, a ESUTN apresentou-se em Uppsala (Suécia), representando a França, onde participaram 14 países, quando Nícia, cooperando, dirigiu uma Bateria composta de 250 percussionistas estrangeiros, selecionada para tocar o Samba-enredo da Escola de Samba Mangueira-(1985). Os franceses apresentaram com autenticidade absoluta o Samba da Mangueira.

 

Nícia continua seus ensinamentos na Avenida Quai de la Gare, 91, Paris, a alunos provenientes de toda a França e de outros países (Alemanha, Inglaterra, etc.).

 

Em 1987, após ter defendido sua tese de doutorado, Nícia dirigiu a ESUTN num grande espetáculo na Féria de Nîmes , do 30 de maio a 8 de junho de 1987, com 150 participantes provenientes de inúmeras associações espalhadas pela França, fundadas por seus alunos. Nessa data, uma pequena parcela da ESUTN apresentou-se ao ar livre, como abertura do espetáculo do renomado cantor e compositor Gilberto Gil.

 

Atualmente, dentre seus ex-alunos, já se pode constatar a existência da 5ª. Geração Tia Nícia. Um trabalho sério extensivo aos ritmos do Candomblé, que possibilita não somente ensinar a tocar, ler e escrever música, mas também produzir a auto-confiança (auto-estima), relacionada à competência individual e coletiva adquirida tocando em grupo. Por isso foram certamente operatórios os exercícios de coordenação motora por ela criados para que pudessem tocar de forma descontraída, parados ou andando, cantando e sorrindo, sem perder o ritmo coletivo, o andamento e a dinâmica.

 

Em 1998 Nícia foi homenageada por seus ex-alunos em Marselha e em Paris. Em 1999, retornando a Paris como professora convidada a ministrar cursos de Semiótica em Paris VIII e palestra em Paris I (Sorbonne Panthéon), sabedores de sua presença na Cidade Luz, os organizadores do V° Encontro Europeu do Samba convidaram-na a participar do Evento, em Villeneuve-sur Lot, do 23 ao 30 de julho. Nessa ocasião deu uma conferência sobre Cultura Musical Brasileira- das raízes afro-indígenas às variantes rítmicas atuais. Com seus ex-alunos apresentou um espetáculo com breques e Sambas-enredo. Seus ex-alunos-avancés, deram estágios nesse Encontro aos europeus inscritos. Nícia ocupou-se dos mais avançados, preparando-os durante 5 dias a tocar o arranjo da Bateria da Escola de Samba campeã do Carnaval Rio-99, a Imperatriz Leopoldinense. Foi um enorme desafio pela complexidade do arranjo dos tamborins (bossas, firulas). A apresentação pública desses estagiários foi um grande sucesso, gravado em Videocassete e enviado ao Mestre Beto, diretor de Bateria da Imperatriz Leopoldinense, para mostrar-lhe a homenagem que lhe fora prestada. Mestre Beto não se conteve de emoção, quando visualizou a Bateria dirigida por Tia Nícia e nela reconheceu a autenticidade do arranjo de sua Escola, tocado como homenagem à Imperatriz e a ele, seu Mestre, por europeus.

 

Em 2000, 150 dos ex-alunos franceses da ESUTN apresentaram-se no Parc de la Villette, na Cité de la Musique (6), sendo dirigidos por Jean-Christophe Jancquin e Ayrald Petit. Tocaram com a Bateria da Escola de Samba Portela dirigida por Mestre Mug, que por sua vez prestou também uma homenagem a tia Nícia, reconhecendo seu trabalho através dos seus ex-alunos. Vários deles participam dos carnavais do Rio de Janeiro, desfilando como ritmistas em Escolas do Primeiro grupo desde a década de oitenta. Nícia não apenas desenvolveu nos franceses o conhecimento e o gosto pela Cultura Musical Brasileira, mas também o amor ao Brasil, respeitando seu povo, usos e costumes. Vale citar o nome de Ayrald Petit, um dos primeiros alunos inscritos e que estudou com Nícia por quase 10 anos. Por ela iniciado (em escrita musical e prática) nos ritmos dos tambores do Candomblé e tendo pesquisado em Salvador Candomblés de várias nações, tornou-se grande estudioso e especialista no assunto, com CDs gravados, sendo responsável por exposições de fotos e documentários sobre o tema, apresentando-o por toda a França.

 

São esses alunos e ex-alunos da Tia Nícia que hoje garantem o sucesso e a perpetuação da Cultura Musical Brasileira na França, incentivando grandes Entidades ao convite de Escolas de Samba e de grupos afro-brasileiros para grandes espetáculos, convencendo empresários à promoção de shows de Música Brasileira com convite a cantores e instrumentistas brasileiros, à importação de instrumentos de percussão para as Associações, e à requisição de professores de língua portuguesa, colaborando, assim, para que o amor pelo Brasil se difunda cada vez mais, intensificando o intercâmbio cultural e a confraternização entre os dois povos envolvidos nesse movimento denominado FRANÇA / BRASIL.

 

Hoje Nícia sabe que “seus filhos”, como ela sempre os chama, são autônomos, professores capazes, com espírito de realização, de conquista de um saber, de respeito a uma cultura e abertos às possibilidades de troca. O conhecimento de uma diferente cultura permite ao povo a valorização da sua. Logo, esses alunos hoje sabem que uma parte da vida musical do Brasil, folclórica e erudita, foi beneficiada pela contribuição de valores musicais advindos da cultura francesa, quando da Missão Artística Francesa, em 1816. Assim, a aprendizagem oferecida nos Conservatórios de Música graças à herança francesa que estruturou os ensinamentos musicais no Brasil,a partir de 1816, hoje é retribuída, em parte, com o trabalho de Nícia. As raízes culturais da Música Brasileira que somente eram manifestadas por meio da oralidade, puderam ser materializadas por meio da escrita musical e, assim sendo, estarem perpetuadas no percurso da história.

 

(1)Defesa em 06 de maio de 1987, tendo obtido a menção máxima (Três Bien).

(2)O Samba em Percussões. Primeira identidade do Samba no Rio de Janeiro, na formação inicial de uma bateria de Escola de Samba. Maneira íntima de tocar o samba nos: pagodes, partidos, praia, bares, estádios de futebol, durante a partida, enfim, na quadra das Escolas.

(3)A codificação foi resultante da desconstrução de, aproximadamente, 300 Batucadas e Baterias de Escolas de Samba, e do exame de numerosas partituras de antigas cantigas do folclore brasileiro. O Corpus como reconstrução para codificar a ‘Batucada de referência’, encontra-se nas páginas 42-43, do Método ‘O 4Samba em Percussões- Batucada Brasileira’ -Santos: 2ª. Edição. A Tribuna-1990 (!a. Edição em francês-Paris: Éditeur Courmontagne – 1982, p.28-29).

(4)Obtido em outubro de 1981.

(5)Cf. jornais: ‘O Dia’ de 03-03-1979, p.9, e ‘O Globo’ de 03-03-1979, p.8, quando Nícia assume diante do Mestre André, levar o Samba da Mocidade para a França.Visitar nos sites www.niciadavila.com.br, e www.semioticall.com.br, o link “Imagens – Reportagens jornalísticas”

(6)Foram duas semanas de Música Brasileira onde se apresentaram várias personalidades da MPB, como Gilberto Gil e Nana Vasconcelos, Paulinho da Viola com a Velha Guarda da Portela, Martinho da Vila, Ilê Ayê, Lenine, entre outros.